Um pé à frente do outro...
“Um pé à frente do outro.”, repetia mentalmente. De um lado a vida, do outro a morte. “É simples... Só tens de te manter na linha... O resto será feito sozinho...”. Claro que o álcool e aquela substância desconhecida que lhe tinham dado a experimentar não a estavam a ajudar muito no equilíbrio. Já muitas vezes o estrondo das ondas contra as rochas, metros abaixo dela, a tinha feito vacilar, causando-lhe náuseas provocadas pelas alturas. Não é que tivesse escolhido o caminho mais fácil. Fazer equilibrismo no topo das muralhas, àquela hora da noite, com a cidade invadida pelos turistas, não fora uma atitude muito inteligente, não. Dar espectáculos não era com ela. Mas sentia que tinha de ser naquela noite. A sua vida estava na corda bamba. Presa por uns ínfimos réstios de esperança, que não passavam de fracos fios, gastos de velhice.
“Estranho... Aquela droga devia ser mesmo forte...” Parecia que todos os seus sentidos estavam mais apurados, os sons das ondas e das vozes da multidão pareciam ecoar dentro da sua cabeça, assim como o cheiro a pipocas, farturas e algas lhe estava a mexer seriamente com o estômago. Fechou os olhos lentamente e abriu os braços, erguendo-se nas pontas dos pés. Sempre quisera ser bailarina... Possuir aquela delicadeza, ser capaz de caminhar como se flutuasse, rodopiar, rodopiar e rodopiar sem sentir náuseas...
Naquele momento, talvez devido aos efeitos da droga, sentia-se capaz de tudo. Tentou improvisar um ballet em cima das pedras escorregadias das muralhas, deu um, dois passos, tentou rodopiar, mas logo se desequilibrou. Agarrou-se às pedras com força, rindo-se às gargalhadas, perante a estupidez da situação. Quase. Tinha sido quase. Que estúpida... Que cobarde... As gargalhadas foram morrendo no vazio, dando lugar às lágrimas, de exaustão, de tristeza, de desespero. Estava tão farta... Tão farta de tudo, de não se encaixar, de ser assim, de não se contentar com o que tinha, como os outros...
A cabeça começava a pesar-lhe muito. Via as luzes da cidade a piscar, os holofotes direccionados para si a ferirem-lhe os olhos. Uma dor extremamente forte no peito fê-la cair da muralha, em cima do passeio pedestre, embatendo com as costas no chão frio de granito. As lágrimas não paravam de escorrer, a respiração tornava-se cada vez mais pesada... Pensava já na ironia da situação, que ia morrer no lado da vida, quando o viu.
Vinha negro como a escuridão do céu, apenas os olhos cintilantes que a fixavam a fizeram notar a sua presença. Era ele. Reconhecê-lo-ia apenas por aquele brilho nos olhos. Chorou mais um pouco, consciente de que ele lhe aparecia nos seus últimos momentos de vida. Talvez houvesse solução... Talvez ele a pudesse ajudar... Porque é que ele tinha demorado tanto tempo...? Se tivesse aparecido uns minutos mais cedo... Agora era tarde demais... Mais uma vez, tinha estragado tudo, deitado tudo a perder... Estendeu a mão a tremer na direcção dele e ele aproximou-se, ficando de cócoras perto da cabeça dela.
- Estás num estado deplorável... – sussurrou, agarrando-lhe a mão com força, enquanto que com a outra, lhe fez uma carícia no cabelo.
Era tão bom tê-lo ali, após aquele tempo todo, que só lhe apetecia levantar-se e abraçá-lo, assegurar-se que nunca mais partiria. Mas as forças pareciam estar a abandonar-lhe o corpo, de modo que apenas o olhar demonstrava todas as emoções que estava a sentir naquele momento.
- Desculpa por te ter abandonado... – murmurou ele, de olhos fechados.
Ela abanou ligeiramente a cabeça, não dando a menor importância ao que ele disse. Ele estava ali. Com ela. Era tudo o que importava... Só sentia pena de ser ela a deixá-lo agora... As dores começavam a passar, assim como qualquer sensação no corpo, mas se houvesse outra solução...
- Sabes que te amo, não sabes...? E que me dói muito ver-te assim...?
- Então... ajuda... me...
- Não posso... Não posso fazer nada por ti... Sabes bem que, no fundo, não passo de um fruto da tua imaginação... Já parti há muito...
E com um último sopro de vida, deu-se conta que tudo se esfumava perante os seus olhos, incluíndo a imagem daquele homem e as suas lágrimas de desgosto.
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