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quarta-feira, outubro 26, 2005

José Luís Peixoto - Antídoto

Dentro e sobre os homens
Somos o medo. Conhecemos tantas histórias. (...) Todos os homens que escondem segredos. E tu? Escondes algum segredo? Responde quando te olhares ao espelho. O teu rosto duplicado: o teu rosto e o teu rosto. Quando vires os teus olhos a verem-te, quando não souberes se tu és tu ou se o teu reflexo no espelho és tu, quando não conseguires distinguir-te de ti, olha para o fundo dessa pessoa que és e imagina o que aconteceria se todos soubessem aquilo que só tu sabes sobre ti. Nesse momento, estaremos contigo. Envolver-te-emos e estarás sozinho.
Caminhar
Cheguei para sempre a este jardim. Era este o jardim dos meus sonhos. Estou como se olhasse à minha volta. Vejo estas árvores como se recordasse o jardim de outrora. Eu sonhava. Este era o lugar onde havia uma luz. Depois, ficávamos de mão dada, e eu sabia que, no tempo a passar, a luz mudaria a cor das plantas e das árvores, porque a luz crescia para o seu fim. E o negro absoluto do meu vestido escurecia ainda mais durante aqueles fins de tarde. Os meus cabelos longos e negros escureciam. Os teus olhos ficavam sobre o mundo da mesma maneira que a tua mão ficava sobre a minha. Os teus olhos sabiam o lugar dos mortos sob esta terra que, para mim, era apenas o seu brilho. Tu sabias mais do que eu. Não estendo as mãos para tocar as ervas que cresceram e secaram entre as flores mortas, entre os canteiros, entre as pedras que o tempo trouxe à superfície. Não estendo as mãos para tocar a brisa. É a brisa que vem ter com as minhas mãos.
Como a solidão, este jardim abandonado anoitece. Guardo derrotas, como se guardasse segredos. Anoiteço sobre este jardim. Agora, entre as ruínas, sou igual a estas ávores que morreram no instante em que tal deixou de fazer sentido. No momento em que partiste, deixei de fazer sentido. O sangue, dentro de mim, é como esta terra seca. A noite não será suficiente para lhe devolver a vida. A noite será como veneno dentro desta terra e dentro de mim porque o céu da noite terá a cor dos meus cabelos, o negro absoluto do meu vestido. A noite será a certeza de que existes entre a multidão. Muito longe daqui, és uma sombra entre a multidão. Durante a noite, eu e esta terra morta, seca, estéril, conseguiremos imaginar-te parado entre pessoas que passam por ti. Houve dias, fins de tarde, em que pousavas a tua mão sobre a minha, em que pousavas o teu olhar sobre esta terra. Esses dias passaram. Existem trovões a dizerem estas palavras. Esses dias passaram. Existem tempestades. O teu olhar, de certeza, continua a ser o curso de um rio. Aqui, neste momento parado: agora. A certeza deste momento é caminhar dentro de um incêndio. As paredes de uma casa, a terra, as árvores, o tecto de uma casa negra, o céu, a arderem e a desabarem sobre mim na consciência de existir este momento, agora, parado. E tu, longe, és uma sombra entre a multidão, o teu olhar é o curso de um rio. E tudo isto é dito por trovões, pela voz das tempestades.
Neste jardim, acabam todas as viagens. Estou sentada na ponta do banco onde nos sentávamos em sonhos. Sinto nos dedos a madeira, os caminhos que insectos percorreram enquanto roíam o nosso passado, sinto a madeira que apodreceu. Avanço lentamente com o olhar sobre este banco, o infinito, avanço lentamente com o olhar e, como uma sombra, debaixo do tempo, vejo-te. Não sei se este rosto és tu a imagem de ti na minha memória. Vejo-te. Nao sei se te vejo. A luz escurece e essa é a cor do tempo a passar. Os meus cabelos negros. O meu vestido negro. Na terra, nas ervas, nas árvores, o negro cobre superfícies cada vez maiores. A noite chega lentamente e estende-se sobre as coisas em pequenas poças de negro. E o negro absoluto do meu vestido escurece ainda mais. E os meus cabelos longos e negros escurecem. A tua pele é tão branca e, como o céu, anoitece devagar. Há uma brisa que passa pelo céu e pela tua pele. Dentro dos teus olhos, há o brilho de onde nascem as respostas, mas não vou perguntar-te nada. Tenho medo de que a minha voz te faça desaparecer de novo. O silêncio é atravessado pelos nossos olhares. O silêncio é o lugar onde os nossos olhares se encontram. Não vou perguntar-te nada.
A noite chega aos teus olhos, às tuas mãos. Sombras de passos. Sei que não conseguirei imaginar estrelas se olhar para este céu negro. Este céu que tem o tamanho do meu peito em todas as vezes que entrei nele para te encontrar. Em vez disso, continuo a olhar para os teus olhos. Antes de anoitecer completamente, o mundo lança os últimos sons fúnebres do dia. Anoitece completamente. O som do mundo a existir, como um coro de silêncios. Para onde quer que olhemos, dentro e fora de nós, apenas a escuridão. Deixo de ver-te como deixo de ver a terra, as árvores ou o jardim. O mundo é todo da cor dos meus cabelos. Agora, neste momento que parou para sempre, poderia estender a minha mão devagar, podia levá-la ao encontro da tua, podia tocar a pele da tua mão. Agora, podia dizer uma palavra, podia dizer o teu nome como se caminhasse numa rua e perdesse uma flor. Permaneço. Imóvel. Em silêncio. Não sei se o rosto, o olhar, o brilho, que vi eras tu, se era a imaginação de ti na minha memória. Na última luz, vi-te. Não sei se te vi. Imóvel. Em silêncio. Tenho medo de que não estejas aqui, neste banco negro, ao meu lado, dentro desta escuridão onde também estou. Mas eu sei que estás aqui. Se quisesse, podia dar-te a mão. Se quisesse, podia dizer o teu nome. Mas eu não sei se estás aqui. Permaneço. Imóvel. Em silêncio. Cheguei para sempre a este jardim e quero que esta noite negra continue para sempre e que nunca tenha de saber se este rosto, aqui, ao meu lado, dentro da escuridão, és tu ou a imagem de ti nesta memória que está aqui ou que sonha que está aqui.
Reflections in the Mirror