Os nossos sonhos dissolvem-se lentamente onde os esquecemos...
Porque às vezes identificamo-nos com tantas coisas que é impossível mantermo-nos calados e não partilhar momentos com outra pessoa.
Porque às vezes descobrimos alguma coisa que nos ajuda a encontrarmo-nos um pouco.
Porque às vezes queremos tanto perceber.
Porque às vezes nos agarramos a algo com ambas as mãos, à procura de respostas, de semelhanças.
Porque às vezes choramos quando nos encontramos e nos perdemos mais um pouco.
Porque às vezes é difícil sermos nós.
Após alguma leitura (não exaustiva) de José Luís Peixoto, reuni aqui algumas coisas que me tocaram. De realçar principalmente o seu texto "Lunar".
José Luís Peixoto - Criança em Ruínas
Fingir que está tudo bem
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
Todo o amor do mundo não foi suficiente
todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. ficaram só
os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não foram suficientes e foram
demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora,
não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem mesmo quando estiver deitado,
nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder.
todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. ficaram só
os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não foram suficientes e foram
demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora,
não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem mesmo quando estiver deitado,
nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder.
José Luís Peixoto - Uma Casa na Escuridão
O frio daquela campa, daquele corpo e daquele amor definitivamente sepultado no interior da minha pele, em cada instante da minha pele de mármore, na cara, no pescoço, no peito. O meu corpo de carne ou de mármore: carne congelada, sangue congelado, escuridão congelada.
José Luís Peixoto - A Casa, a Escuridão
A Escuridão
tenho medo. de noite, quando não consigo dormir, a morte
ressuscita mortes. deitado sobre a cama, uma mão negra
desce do tecto para me tocar no peito. tenho medo. silêncio
e frio sobre o meu corpo. olho para dentro de mim e não
vejo nada. tenho medo. todos os que me chamam de dentro
da escuridão sabem que há uma casa com paredes antes
de mim, sabem que eu não sou aquele que ilumina o mundo.
tenho medo. quando não consigo dormir e prolongo as
noites, a culpa envolve-me de medo e frio, o silêncio diz-me
para esperar, pois o descanso virá com a noite maior,
a noite em que a manhã nunca chegará.
Jorge Luís Peixoto - Lunar
(...) Agora, neste momento, não sei onde estás. Imagino-te a fazer tantas coisas. Imagino-te a não te lembrares de mim. (...) Quando ainda era mesmo de noite e estavas ao meu lado, disseste: não podemos ser felizes. Eu desejava-te tanto. Eu via os teus olhos através do ar da noite, sabia que estavas a meu lado e sabia que nos íamos separar. Vi-te partir. Os teus passos a afastarem-te de mim. Eu estava parado perante o horror, o medo. Tu afastavas-te de mim. Entravas em casa, como se saísses para sempre de mim. Saías para sempre de mim. O momento em que fechaste a porta: eu soterrado por todo o negro, todo o veneno negro. Uma faca infinita. Eu a perceber que ficarás para sempre fechada dentro dessa casa. Nunca, nunca mais poderás sair. A noite, a rodear-me, era o lugar negro onde existiam certezas terríveis: a morte, a morte de tudo. Entre as paredes das casas, a tua casa. Os vidros das tuas janelas fechadas reflectiam a escuridão do mundo. Os meus olhos derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim, olhava para o lugar onde sabia que estavas, a casa que te continha e, no entanto, aquela casa era um lugar escuro, um poço, era como se tivesses mergulhado dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós. Eu sabia que nunca mais te voltaria a ver. Eu desejava-te ainda. Agora, desejo-te ainda. Sei que existem cemitérios. Sei que a casa onde estás, o lugar onde te imagino a fazer tantas coisas, a não te lembrares de mim, é um lugar de destroços. Vivemos rodeados de cemitérios. Aquilo que fomos está enterrado à nossa volta e nunca poderemos saber onde deixámos tudo aquilo que não voltaremos a ver. (...) Os teus olhos eram um caminho. Os teus cabelos eram talvez um horizonte. Não sei como acreditámos que as palavras eram simples. Sonhávamos e enganámo-nos. Sorrindo, mergulhávamos os lábios no veneno quando pensávamos que bebíamos o antídoto.
(...) Quando era criança, temia a morte. Agora, envelheço tanto. Temo a morte mas sei que, se tentar fugir-lhe, estarei a correr na sua direcção. Caminho sobre as pedras do passeio. Ouço os meus passos debaixo do nevoeiro. Fujo da morte porque quero correr na sua direcção.
A memória como uma maldição. Caímos na eternidade e a memória é um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca poderemos voltar. (...) Lembro-me de quando nos conhecemos e esse dia está debaixo do teu olhar e desta noite. Lembro-me da minha mão pousada sobre a tua e esse instante está debaixo da palavra solidão. Lembro-me de tantas coisas impossíveis. Agora, caminho por esta manhã deserta. As pedras do passeio existem debaixo dos meus passos. Ninguém, nem sequer eu próprio, me pergunta para onde vou. Nas ruas desertas, sou uma multidão de gente mutilada a caminhar. Sou aquele que, esta noite, te viu partir, que olhou para ti quando os teus olhos se despediram e que não pôde fazer nada senão olhar para ti, o corpo que foi meu, e vê-lo afastar-se, cada vez mais longe dos meus braços. (...)
Nunca mais poderei sonhar porque tu não estarás ao meu lado e, descobri hoje, só posso sonhar contigo ao meu lado. Espetada infinitamente em mim, uma faca infinita. Deixei de imaginar o futuro. Sobre esse tempo que não sei se chegará existe um manto muito mais negro do que aquele que cobre o passado. Não consigo olhar através desse tempo negro. O futuro estará depois de muitas noites, mas eu deixei de imaginar as noites. Sei que, da mesma maneira que esta noite se cobriu de manhã, esta manhã poderá anoitecer. Consigo imaginar cada tom das suas cores a tornarem-se negras. Não consigo imaginar este tempo a transformar-se noutro tempo. Contigo, perdi tudo o que fui para não ser mais nada. Deixei-me ficar nos sonhos que tivémos. Abandonei-me. Nunca mais entenderemos a lua como quando acreditávamos que aquela luz que atravessava a noite nos aquecia. Nunca mais. Nunca mais poderemos sonhar. Nunca mais.
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