Um ano...
David Peres - Maria
Comecei a voar quando ouvi a tua voz
Era verão em Junho e foi há tanto tempo...
Era verão em Junho e foi há tanto tempo...
Fazia calor por dentro da alma e comecei por sentir tudo aquilo, como se a felicidade estivesse quase a entrar em mim, como se ela trouxesse tudo.
Voei naquele sonho onde recordei um deus não cruel, como quem sente que o passado se está a transformar como que por um encanto inadiável.
Voei naquele sonho onde recordei um deus não cruel, como quem sente que o passado se está a transformar como que por um encanto inadiável.
Senti uma areia muito fina que por dentro do corpo saía e como por magia tornaste-te a união com tudo aquilo que na véspera atirei ao ar.
Fazes-me recordar tanta coisa.
Recordo ainda tanta coisa de mim há tanto tempo, que já não sei.
É verdade que durante duas ou mais eternidades senti muitas saudades mas agora, não sei como explicar-te, sinto a vida, o mundo e as pessoas que por mim passaram, mas de outra maneira.
Hoje voei dentro de água. Sonhei ou acordei aquela tarde de verão longe e tardia. O telemóvel já não toca como na manhã seguinte e lembrei-me daquele pássaro que levou a primavera para dentro do sol e aí morreu.
O sonho voou por dentro de nós, por dentro do tempo há muito... e sentiu no nosso sono a estranha certeza que ali até ele e as suas mágicas porções contidas num "retrato" que guardamos, muito pouco podem fazer.
O sonho voou por dentro de nós, por dentro do tempo há muito... e sentiu no nosso sono a estranha certeza que ali até ele e as suas mágicas porções contidas num "retrato" que guardamos, muito pouco podem fazer.
Mas a fome e a sede da ternura que nos está sempre tão perto e para a qual não sabemos se temos a força suficiente para correr, talvez se transforme num apetite que ainda não somos capazes de dizer.
O teu rosto está a uma distância insuportável.
O futuro sente que tem de fazer muita força para chegar aqui.
Faz hoje um ano... Um ano que passou desde aquela noite, a primeira noite. Ainda me lembro do nervoso da noite anterior, de como me deitei a pensar se estaria a fazer a coisa certa. De como me disseste que seria uma noite fantástica, maravilhosa, perfeita... Lembro-me de ter passado grande parte da tarde no cabeleireiro a roer as unhas com a ansiedade... De ter ido jantar a casa da Xana e de me sentir tão mal que quase não consegui comer nada, estava sempre prestes a vomitar. De como me arranjei e de como me apeteceu partir o espelho e rasgar o vestido, porque me sentia ridícula. De como ajudei a Xana a pentear-se e a arranjar-se e depois ainda fomos buscar a Alexandra, eu mais nervosa do que nunca... De como me deste o toque e elas ainda se estavam a maquiar e a colar-me as unhas postiças, porque eu tinha roído tanto as unhas que estavam uma miséria. De me teres mandado mensagens a dizer que já estavas à espera e eu cheguei super atrasada, e já pensavas que não ia aparecer. De como tentei fazer aquele ar de à vontade, a primeira vez que nos viamos e eu mal me segurava nas pernas... Aquelas borboletas no estômago... Ia ser a melhor noite da minha vida... Tinha de ser... Estavas ali e isso, só por si, bastava... Entramos e houve logo aquela situação com a Alexandra e o namorado. Naquele instante percebi que a noite não seria fácil... Tirámos aquela fotografia, os três, tu no meio, eu e a Xana do teu lado... Nunca a vimos. Falávamos com profs, com pessoal da turma... Eu estava nervosa, porque ia ler perante aquela multidão toda e o meu ar de à vontade era completamente falso... E lembro-me que puseste a tua mão nas minhas costas como que para me acalmar, e estavas sempre ali, a segurar-me nas coisas, a acalmar-me... Eu estava prestes a cair para o lado, a morrer de calor, só queria fugir dali, para um sítio calmo e sossegado, só nós os dois... Não te dei a atenção que merecias nessa noite. Fui egoísta. Só pensei em mim. Mesmo nessa noite acabamos muitas vezes isolados, cada um para o seu canto... Tu sozinho, de preto, escondido na escuridão, eu a correr de um lado para o outro, a chatear-me com a Alexandra, recolhida no meu canto enquanto tu e a Xana falavam.
Foi há um ano que estivemos parados aqui à frente de minha casa, eu deitada no teu colo... Um ano que vi as tuas lágrimas, que te tentei amparar naquele momento em que sabia que precisavas de mim... Um ano que me apercebi que tinha feito merda, no momento em que mais precisavas de mim... E que foi só o início... Lembro-me que no dia seguinte disseste que se calhar não nos devíamos ver mais, que eu tinha razão, que aquilo ia estragar tudo... E um ano que eu insisti que queria emendar os meus erros, que ia ser diferente... Não foi, pois não? Não foi nada diferente... Foi a primeira noite do resto da minha vida... A noite que era suposto ter sido maravilhosa, linda e perfeita... E que apenas nos destruiu. Tinhamos tudo para sermos felizes... Tinhamos tudo o que era preciso para darmos as mãos, erguermos as cabeças e seguirmos em frente.
Hoje, passado um ano desde essa noite, dou por mim abraçada a mim própria, tão diferente já do que era nessa altura, com uma vida auto-destrutiva e um sentimento repulsivo para com tudo o que me diz respeito. Dou por mim sozinha, mas rodeada de gente, atrás de um novo muro, uma nova barreira que surgiu após a outra ter sido derrubada. Dou por mim aqui e dou por ti aí. Como naquela noite. Como tudo começou, ou melhor, acabou. É incrível como, num ano, continuo cada vez mais agarrada a ti, mas de maneira diferente. Como sufoco de dor e angústia perante tudo o que se perdeu... Como me dói a tua dor, como cada palavra tua ficou gravada a ferro em mim, como cada imagem tua está cá dentro, cada momento, cada sentimento, cada olhar, cada gesto, cada silêncio, cada riso, cada lágrima, cada grito... Vivo numa escuridão da qual não pretendo sair, porque é o único elemento que nos une... É o único elo entre nós, a única maneira de me identificar contigo... A única maneira de estar, de alguma forma, contigo... A única maneira que conheço de viver... Sou marcada pelo silêncio, pela imparcialidade, pela indiferença. Mas sobretudo pelo silêncio e frieza. Aquela que nunca foi capaz de se dar, de se entregar, que cresceu afastada de todos, que se manteve afastada de todos, que se rodeou de arame farpado, que chora lágrimas de sangue que ninguém vê, ou que mesmo que veja nada pode fazer em relação a isso. Aprendi a esconder-me do mundo, a encolher-me no canto, a proteger-me com as minhas asas partidas que nunca souberam como voar. A mostrar-me de uma maneira que ninguém percebe, a demonstrar o meu sofrimento de uma maneira que ninguém vê, a gritar de uma maneira que ninguém ouve. Mostro-me pelo silêncio, sofro com um sorriso, grito com murmúrios. Que espécie de monstro sou eu? Que género de ser humano nasceu em mim, que se assemelha em tudo ao que um dia reprovamos da vida, das pessoas? O que é feito de mim, de nós? Está perdido, bem sei. Morreu, bem sei. Mas continua tão aqui... Tão presente a cada momento, a cada instante, a cada reflexo, olhar, pestanejar, pensar, sentir... Para onde é que fomos?
Um ano passado, resta-me esperar pelo próximo, já sem projectos, sem esperanças, sem expectativas. Sem desilusões nem ilusões. Como será no próximo ano? Onde estaremos nessa altura? Tudo se perdeu demasiado depressa. Demasiado...
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