Uma merda qualquer.
Foi naquele dia, lembras-te? Olhámos um para o outro e sorrimos. Por cima das nossas cabeças, uma tempestade de estrelas que deslizavam em todas as direcções. Tudo à nossa volta se desvaneceu naquele momento, enquanto eramos arrastados pela magnitude do olhar. Levantamos os pés da terra e voamos a noite toda, cavalgando nas estrelas, deslizando nas nuvens, dançando na lua. Sorríamos, a noite era nossa. Os medos desapareceram por detrás das constelações, recolhidos na escuridão que nos rodeava mas que nós ignoravamos pois a luz naquele momento eramos nós. Enfrentamos os asteróides de cabeça erguida e olhar decidido, ao som da música dos cometas. Das nossas costas nasceram umas asas, brancas e leves como as dos verdadeiros anjos, o que nos deu força para voarmos mais alto, sorrindo por estarmos no topo do mundo. E prometeste que nunca mais voltaríamos para baixo. Juntos, seríamos um e nada nos iria cortar as asas. E eu acreditei em ti. Fizemos promessas e juramentos perante as estrelas e Deus, com os anjos a nosso lado, abençoando a nossa união. Naquele dia soaram trompetes, houve uma chuva de luz, com leves plumas a esvoaçar em volta do meu rosto. Seguraste-me nos teus braços e ergueste-me bem alto e, apesar do meu sorriso maravilhado, fizeste-me olhar para baixo. Porque me colocaste num pedastal onde eu não pertencia e de onde conseguia ver a distância que nos separava da terra. Ao longe, vi os nossos medos espreitarem por detrás das constelações, esperando o momento certo para nos voltarem a atormentar. Vi os asteróides nas nossas costas, prontos para nos atacarem mal olhassemos para trás. Vi a terra, vi a solidão, as lágrimas, as facas, o sangue, as cruzes, o negro. O meu sorriso desvaneceu-se naquele momento e as minhas asas começaram a transformar-se. Olhei para ti, como se o nosso mundo estivesse prestes a desabar e tu voltaste a pousar-me no chão, com um ar confuso. Observavas as minhas mudanças sem as perceber, as minhas asas passarem de branco a cinzento e depois a negro como a escuridão da noite, os meus olhos a perderem o brilho, marcas negras de lágrimas que deslizavam pela minha face. Tentaste erguer-me de novo, mas as asas já eram demasiados pesadas e não as conseguia abrir sequer. Voaste à minha volta, a tentar ajudar-me, dizendo-me como fazer, incentivando-me. Mas encolhi-me e observei-te, enquanto chorava silenciosamente. Puxaste-me, abanaste-me, gritaste comigo, mas eu permanecia calada, com aquela dor incompreensível nos olhos. Até que chegou o momento. O momento de saltar. De cair. Viste-me aproximar-me do precipício que nos separava da terra e nada puseste fazer. Dos teus olhos, brotavam lágrimas que deixavam uma marca negra na tua face. As tuas asas tornaram-se negras e pesadas, o teu olhar era negro, mas repleto de ódio. E viste-me saltar e não fizeste nada. Enquanto caía, senti-me a ser sugada pelos terríveis asteróides, vi os medos correrem na minha direcção, vi-te atirares-te também, de lá de cima, não na minha direcção, mas de volta ao mundo negro chamado terra. Os anjos choravam a nossa desgraça, as estrelas desapareceram no céu, a lua virou-nos as costas. O pânico invadiu-me e, quando finalmente aterramos na terra, com as estrelas sobre as nossas cabeças, olhamos um para o outro e não sorrimos. Um vazio, aquele vazio, tinha-se apoderado de nós. Viraste a cabeça, ignorando-me e continuaste o teu caminho, com o par de asas que te dei, negras como todo o teu ser. Eu olhei o céu, as estrelas, a lua e chorei. Esperei por ti, por outra noite daquelas, mas tu nunca mais apareceste. E eu morri.
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